terça-feira, 4 de maio de 2010

Corre, Natasha! Corre!

- Corre Natasha! Corre!
As chamas se aproximavam tão velozmente que parecia impossível que ela chegasse a algum lugar seguro antes que elas a alcançassem. A fumaça preta tornava tudo tão turvo que era impossível enxergar a menos de dois palmos a sua frente. Por duas vezes, Natasha quase quebrou o nariz ao colidir com um móvel ou uma parede. Brasas pulavam das paredes em chamas, dançando em ritmo de salsa, criando uma bela imagem pirotécnica que mais parecia ano novo em Copacabana. Seriam lindas se não chamuscassem suas sobrancelhas recém feitas. O calor era insuportável. Natasha se sentia nojenta, suava por todos os poros imagináveis e por outros que ela nem sonhava existirem. Os gritos de seus colegas não ajudavam em nada. Apenas a deixavam mais nervosa.
- Anda logo, Natasha!
- Se você disser mais uma palavra, eu juro que faço você engolir essa sua língua! E aposto que todos os outros ainda vão me agradecer depois!
O outro se calou. Ela adorava ver a cara de bunda com que eles ficavam depois de receber uma bela carcada. Às vezes até a fazia esquecer que estava dentro de uma casa em chamas. Natasha Ember era comandante do 15º Batalhão do Corpo de Bombeiros. Naquele momento, estavam operando um resgate em um sobrado do qual o dono, que morava sozinho, fez a gentileza de colocar a comida no fogo e subir para tomar banho. O resultado: uma equipe de cinco homens e sua comandante tiveram que invadir a casa e salvar o dito cujo do fogo que já consumia metade de seu belo lar. No momento, o homem já estava devidamente acalmado (uma técnica antiga em que o bombeiro aperta uma única veia no pescoço da vítima desesperada para colocá-la a dormir tranquilamente sonhando com belos carneirinhos branquinhos e sedosos saltitando em lindos campos verdejantes, enquanto os bombeiros enfrentam o inferno de Dante para tirá-la de lá viva) e sendo carregado em uma maca por dois bombeiros. Natasha vinha à frente, guiando o comboio. Mas ela estava sem saída.
- A porta da frente está emperrada! – dizia ela dando solavancos na porta que cismava em permanecer fechada. Rendida, Natasha deu cinco passos para trás. Ela respirou fundo. Uma exorbitante quantidade de dióxido de carbono invadiu suas narinas e tomou conta de seus pulmões - nada com o que não estivesse habituada – e correu em direção à porta teimosa. Com uma força descomunal para uma mulher, ela se jogou de ombros sobre o portal de madeira.
Natasha sentiu a pancada no ombro direito, seus olhos lacrimejaram instantaneamente, ao mesmo tempo em que ouviu o som mágico da madeira se rompendo. A porta se soltou do batente e caiu para o lado de fora. Natasha, como boa visitante, não pôde deixar de acompanhá-la. O golpe contra o chão foi ainda mais duro, mesmo que a porta o “amaciasse”. No mesmo instante, Natasha sentiu o cheiro puro e belo do oxigênio adentrando suas narinas. Ela não se levantou de imediato. Ficou deitada de bruços sobre a porta derrubada, admirando o céu negro estrelado, enquanto seus companheiros passavam por cima de seu corpo caído.
- Você está bem? – perguntou um de seus colegas.
- Melhor agora que consigo respirar ar de verdade e enxergar a dois palmos do meu nariz. – respondeu, ainda deitada sobre a porta. A brisa batia em seu rosto era uma dádiva de Deus, depois de sair daquele forno tamanho gigante.
- Quer se levantar agora?
- Não, obrigada. Vou ficar mais um pouco aqui.
- Ok. Me avise se precisar de ajuda.
Por baixo daquele cobertor de fuligem e cinzas, havia um belíssimo exemplar de mulher. Pele branquinha, cabelos ruivos naturais, cheia de sardinhas nas maçãs do rosto e olhos bem azuis, Natasha poderiam facilmente ser modelo ou atriz. Mas ela sempre foi movida pela adrenalina. Algo que não encontraria numa passarela ou na frente das câmeras. Ela sempre gostou de emoção de verdade.
- Errr... Natasha? – veio da além a voz de seu subcomandante. Pouco depois sua cabeça adentrou no seu campo de visão, cobrindo a Lua.
- Sim?
- Temos um problema. – ela bufou. Será que não poderia ter um momento de descanso depois de um resgate?
- E qual seria?
- O sujeito alega ter um gato de estimação.
- Ah... perfeito. – Natasha sabia que a aquela altura do incêndio, um gato já teria fugido ou virado churrasco. Não existia outra possibilidade. Mas como profissional não poderia deixar de tentar o “resgate” do animal.
No instante que a comandante se preparava para levantar de seu leito amadeirado e duro, um enorme estrondo assustou a todos ao redor da casa. Um barulho de madeira se rompendo. No mesmo instante milhares de fagulhas incandescentes se ergueram no ar iluminando a noite nebulosa como fogos de artifício. Uma enorme cortina de fumaça irrompeu pelas janelas e portas da moradia. Mais um estrondo de madeira se partindo foi ouvido.
- A fundação da casa está cedendo! – gritou Natasha para seus colegas. – Corram! Andem logo, saiam de perto da casa!
A correria e o caos tomaram conta da cena. Os bombeiros que tentavam controlar o fogo desistiram da empreitada na mesma hora, desligando a válvula e enrolando as mangueiras. Porém, antes que pudessem guardá-las devidamente no caminhão, o motorista deu a partida e tirou o veículo do terreno, fazendo com que dois bombeiros fossem arrastados pela impulsão do automóvel. O proprietário da casa se desesperou e tentou correr em direção ao seu lar. O subcomandante se precipitou para impedi-lo, entretanto a vítima do incêndio tentou resistir. Outros dois bombeiros tiveram que segurá-lo. Quando Natasha rumava para longe do inferno em chamas que se tornara aquela casa, a fundação principal finalmente cedeu e toda a estrutura do prédio foi ao chão. Natasha só teve tempo de se jogar buscando sair do alcance dos escombros.
Uma verdadeira cortina de poeira e cinzas se ergueu naquela noite. Ironicamente, o céu noturno estava límpido e estrelado. O vento noroeste que batia ajudou a dissipar os resíduos do desmoronamento rapidamente. Os bombeiros faziam uma busca minuciosa nos escombros da casa. Procuravam por Natasha Ember. Nenhum deles estava realmente acreditando que aquilo poderia ter acontecido. Ela sempre fora a mais durona de todo o batalhão.
- Senhor, você acha que ela pode estar bem? – disse um dos colegas de Natasha ao subcomandante.
- Vamos continuar com as buscas. – respondeu de bate e pronto mantendo a pose de seriedade.
- Não foi isso que eu perguntei, senhor. Eu digo... o senhor realmente acha que ela pode estar bem? – o subcomandante vacilou por um segundo antes de responder, dessa vez já aparentando estar profundamente abatido.
- Eu trabalho com Natasha a anos. – disse com a cabeça baixa e a voz falhando. - E ela nunca chegou nem perto de algo parecido com isso, sempre saiu ilesa.
Antes que o outro pudesse responder, ambos ouviram um miado. Eles se sobressaltaram e viraram na direção de onde viera o som do felino.
Encostada numa árvore, coberta de fuligem da cabeça aos pés e com um sorriso maroto estampado na face, estava Natasha Ember. Em seu colo, estava embolado um vulto preto que mais parecia um ursinho de pelúcia esquecido atrás do armário a anos. Havia mais poeira do que pelos. De repente, o ursinho de pelúcia se moveu e emitiu mais um miado. Aturdidos, os bombeiros correram em direção de sua comandante.
- Natasha! Você está viva!!
- Parece que sim. – respondeu ela sorrindo, mas exalando cansaço.
- Como isso aconteceu?
- Eu não sei. – disse com um ar misterioso. – Foi um golpe de sorte.
Golpe de sorte. Nunca contara com isso antes em sua carreira. Talvez fosse a hora de se aposentar da vida de bombeiro. Talvez tentasse alguma coisa na TV. Dublê seria um ótimo começo.