terça-feira, 29 de março de 2011

Enter Sandman - Metallica



- Venha aqui, garoto. – disse o homem estranho. – Pegue minha mão. Vamos não tenha medo.

E de repente parecia que todas as pessoas do mundo tinham sumido. E ele estava sozinho. Não tinha ninguém para ajudá-lo, teria de tomar aquela decisão sozinho. Mas aquele homem era muito estranho. Lembrou-se de sua mãe dizendo para não confiar em estranhos.

- Faça suas preces, meu filho. – ela dizia. O homem da areia, era como ele o via, estava ali parado esperando por ele. Sujo, com um cheiro estranho, mas muito simpático e atencioso. Não parecia querer fazer mal. Dizia coisas legais, falando que o levaria a lugares mágicos.

- Você vai conhecer a Terra do Nunca. Você sabe o que é? – o garoto balançou a cabeça negativamente. – Ah, é um lugar mágico, onde as crianças nunca crescem e podem voar. Você quer voar?

E pensar que há poucas horas estava na porta da escola quando o homem da areia chegou e o convidou para um passeio. Seus amigos também gostaram dele, mas não puderam acompanhá-lo no passeio. Todos eles moravam longe e seus pais os buscavam na escola. Sorte a dele que ia a pé para casa.

O homem da areia o levou-o a um lugar escondido no subúrbio da cidade. Para oferecê-lo algo que o faria voar. Ele não parecia uma pessoa má.

- Vamos pequenino, vai querer? A primeira eu te dou de graça.

Estendeu para ele um pequeno saquinho fechado. E ele aceitou.

- Muito bem, vamos conhecer a Branca de Neve.

terça-feira, 22 de março de 2011

Musicontos - Clandestino



- Corre Maria!

E de repente o mundo sucumbiu. Aquela bela tarde ensolarada e tranquila se transformava em uma irreal mistura de cores e sons confusos. Maria e seu marido pegaram seus pertences mais importantes e o pouco de dinheiro que tinham feito pela manhã e correram desesperadamente deixando para trás uma grande quantidade de mercadoria em sua barraquinha na vendinha local. Num breve olhar de relance para trás, eles vêem os homens fardados derrubando todas suas mercadorias no chão. E não há tempo para lamentações, eles apenas continuam a correr.

Eles dobram à direita em uma ruela escondida. Ambos se esgueirando para chegar ao final da rua. Um olhar de relance para trás e os policiais ainda os seguem. Dobram novamente à direita, tentando despistá-los. E os policiais seguem no encalço. Eles começavam a se desesperar quando uma porta se abre na rua por onde eles corriam. Um senhor postado em frente a ela fazia um sinal com os braços.

- Entrem aqui!

Sem opção, o casal fugitivo adentra o portal. Eles ouvem a porta bater às suas costas. E pela janela eles vêem os policiais passando correndo direto sem percebê-los. Só então que os nervos se assentaram e eles puderam perceber onde estavam. Era o interior de um pequeno restaurante. E eles o conheciam. Era uma taverna onde os clientes eram principalmente imigrantes. O próprio dono era ilegal.

E viver na América era assim. Sempre contando com a ajuda do próximo que está numa situação parecida. “Ilegal”, eles dizem. Tudo isso por não ter um pedaço de papel que diz que podem viver ali. Clandestinos que deveriam passar a vida assim, fugindo das autoridades. Quando tudo que queriam era viver normal e tranquilamente no país da oportunidade.

segunda-feira, 14 de março de 2011

Musicontos - Under the Bridge





Aqui em baixo, escondido das luzes da cidade, eu me sinto protegido. Mas ao mesmo tempo fico assustado. Os carros passam sobre a minha cabeça e seus ruídos distorcidos em meu cérebro entorpecido parecem mais com rugidos ferozes de animais selvagens querendo me devorar. E eu estou sozinho. Com a cidade como minha única companheira.

A ponte onde me escondo me protege da chuva e do frio. E a solidão bate duramente em meu peito. Quando me sinto esmagado por ela, acendo minha pita. Meu corpo relaxa, mas feras voltam a rugir ao meu redor. A ponte sob a qual me escondo não vai me proteger dos rugidos mortais em minha mente. Eu estou sozinho e me rendendo ao mesmo vício que o levou de mim. Sinto a sua falta. Mas não quero ter o mesmo fim que você. Você foi o meu melhor amigo e sinto a sua falta. E o mal que o levou, ainda me consome.

A cidade passa rapidamente diante de meus olhos, enquanto fico atordoado demais para me mover. Desde que você se foi ela é minha única amiga. Decido sair para uma caminhada. Quando me levanto, os habitantes da ponte me olham intrigados. Eles sabem que eu não pertenço àquele mundo. Mas acho que sabem que não farei mal a eles. Eles me deixam ir.

Horas, ou minutos, ou segundos depois retorno à ponte. Não tenho mais noção de tempo, nem de espaço. Sento sob a ponte e novamente penso em você. Por que você se foi? Por que me sinto tão só? Por você farei um último esforço. Pego meu caderno e começo a fazer aquilo que era meu objetivo inicial quando cheguei à ponte, dias atrás. Sozinho sob uma ponte. Eu e minha pita. E a letra flui naturalmente.

terça-feira, 1 de março de 2011

Musicontos - Smoke Two Joints




- Pode apagar? – perguntou um.
- Pode. – respondeu o outro.
E um silêncio se fez entre os dois. Silêncio esse que rendeu milhares de pensamentos sortidos. Em poucos segundos de silêncio. Um silêncio de duas criaturas, separadas por uma poltrona e um sofá.
- Cara, as vezes a vida parece um grande jogo, não é? – Disse o que estava sentado na poltrona. O do sofá encarou o primeiro com uma expressão interrogativa estampada na face.
- Como é que é? – o da poltrona apenas sorriu e lambeu os lábios ressacados antes de começar a falar.
- Pensa comigo... – iniciou aquele que julgaria ser um verdadeiro discurso e ficaria extremamente satisfeito se ao final dele o único ouvinte presente saísse entendido. – Quando a gente precisa de alguma coisa, sempre aparece um desafio no meio do caminho. Alguma coisa que você não esperava encontrar lá. Aí você precisa pensar num jeito de passar por ele, usando os recursos e as ferramentas que você tem a disposição. Certo? – o outro fez que sim com a cabeça. Parecia estar acompanhando o raciocínio. – Então, se você consegue passar pelo seu desafio, você pode chegar no seu prêmio, naquilo que você quer. Se você para no desafio é game over, brother, desiste do prêmio. E quando a gente vai passando de fase, parece que vai ficando cada vez mais difícil...
- Nooooossa, pode crer. – completou o do sofá, finalmente entrando na conversa. – E ás vezes tem umas fases bônus.
- Fase bônus? – foi a vez do rapaz da poltrona fazer cara de dúvida.
- É, tipo aquelas missões secretas de quando o Mario entra no cano.
- Eu sei o que é uma fase bônus, só não entendi o que você quis dizer com isso.
- Ah, é quando você ta numa situação diferente do normal, parece que os obstáculos são meio diferentes. Tipo uma brisa que não é da fase mesmo, saca?
- Podeee crer.
E novamente o silêncio reinou entre eles por eternos segundos. Suas bocas se rasgavam por dentro de tão secas.
- Cara, sabe o que eu queria agora? – indagou o da poltrona.
- Hum?
- Uma garrafa de água.
- Uma garrafa?
- É.
- Também to com a boca seca, mas um copinho acho que resolve.
- Eu tinha pensado na garrafa por que a gente deixava ela aqui, aí não precisava ficar levantando pra beber água. – disse o da poltroa, todo pomposo.
- Pode creeee.
- Então?
- Então o que?
- Pega a garrafa lá.
- Por que eu? Você que tá querendo. – argumentou o do sofá.
- Mas eu já dei a idéia da garrafa. Vai, mano.
- Nossa velho, fase nível hard. – rendeu-se o outro, levantando-se de seu confortável sofá.
E ele deixou a sala em direção à cozinha. Enquanto o outro permaneceu imóvel em sua poltrona. Os segundos corriam em slow motion do cronômetro que piscava incessantemente no topo da tela. Por onde será que andava seu parceiro? Não o via mais no mapa. Que tipo de adversidades encontrou no caminho de sua busca pelo objeto final. O cálice de água eterno. Ouviu o barulho da porta da geladeira de fechando. Sabia que seu parceiro obtivera êxito em sua missão.
- Cara, esse foi tipo o chefão. – disse o outro, anunciando sua merecida vitória. Voltou a se acomodar em seu sofá, local do qual não queria ter saído de maneira alguma.
- Agora o prêmio. - E ele deu um longo e refrescante gole na água. A garrafa toda suada por fora anunciava o quão gelada ela estava.
- Ahhhhh... Refil de vida.
E ambos cairam na gargalhada. Enquanto o da poltrona bebia da poção sagrada, o do sofá mexia em alguns apetrechos pessoais que estavam no braço do sofá. O da poltrona terminou seu gole, recarregando suas energias. Enquanto isso, o do sofá o fitava esperando que o contato visual acontecesse. E o da poltrona olhou. Rapidamente o do sofá disse antes que o outro decidisse começar a falar de novo:
- E aí, vamos acender outro?

quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011

Musicontos - Cegos do Castelo





“Eu não quero mais mentir”, ele pensou.

E com esse pensamento, que parece inocente e altruísta para quem o ouve assim despretensiosamente, se iniciou uma jornada. Nada é tão simples quanto se deseja que fosse. Parar de mentir é um processo que gera consequências não apenas para si próprio. E visto o cargo ocupado por ele, parar de mentir não era uma possibilidade. E, embora estivesse decidido a fazê-lo, teria de optar por sua posição ou seu ideal. Não hesitou um segundo sequer.
Ao meio-dia sua mesa estava toda arrumada. Seu escritório particular estava impecável como sempre fora, afinal não poderia levantar suspeitas ou seu plano fracassaria antes mesmo de ser colocado em prática. Arrumou sua maleta. Porém, dessa vez ela não levaria os importantes e sigilosos documentos de outrora. Ela serviria para carregar os poucos objetos de seu escritório que realmente lhe serviriam para algo. Uma caneta, um talão de cheques, um bloco de anotações com alguns telefones, um porta-retratos com uma foto específica. Olhou para a foto mais uma vez. Um tímido sorriso surgiu no canto de sua boca. Ele se perdeu naquela foto por alguns segundos até que uma batida na porta de seu escritório o despertou. Ele rapidamente guardou o porta-retratos na maleta e anunciou ao visitante:

“Entre.”

Era sua secretária. Ela trazia a lista de compromissos do dia. Ele mal ouvia o que era dito pela outra. Aliás, queria poder mandá-la a puta que a pariu e dizer o quanto ela era chata e impertinente. Mas focou-se em fingir que todo aquele blablablá era importante, desejando que ela terminasse logo. Nada daquilo fazia diferença para ele. Não mais. Há tempos ele já não via glória naquilo tudo. Tudo que ele desejou (e conseguiu) já não fazia mais sentido nenhum. Por fim, aquela tagarela frígida terminou de falar. Ele não quis se prolongar, apenas respondeu:

“Certo, obrigado.”

E ela finalmente saiu da sala. E ele pôde, enfim, começar a colocar seu plano em prática. O primeiro passo seria anunciar aquilo que há meses já estava estampado em sua testa. E que ninguém via. Pegou um de seus papéis timbrados que já vinha especificado com seu nome e cargo, sentou-se em sua confortável poltrona, escolheu uma de suas preciosas canetas de nanquim e transcreveu o texto que já estava pronto em sua mente há tempos.


Prezados senhores intocáveis,

Venho por meio desta, manifestar o meu descontentamento com o rumo que vosso governo vem tomando. Milhares e milhares de colaboradores sofrem consequências terríveis, para que os senhores possam desfrutar ao máximo do que a vida tem a oferecer. Os senhores estão cegos pela ganância e pelo poder. Intocáveis, no alto de vossos castelos, os senhores assistem a desgraça do povo e riem dela, com as mãos lavadas em suas mentes.
O que os senhores não vêem é vossas mãos estão mais sujas do que a ganância que vos cega e que as feridas alheias provêm de espinhos que foram cultivados por vós. E não me excluo disso. Contudo, partirei antes que os senhores decidam puxar o gatilho e que o revolver venha a explodir. Não farei mais parte disso.
Quando lerem isso, já estarei longe. Não me procurem, pois não me acharão. Desejo aos senhores toda a sorte. Mas não para vossos planos e sim para vossas almas. Que elas sejam perdoadas, ou que algo possa iluminá-los antes que seja tarde. Adeus”.



Ele assinou a carta e a posicionou perfeitamente alinhada ao centro da mesa. Deu uma última olhada na sala que ocupara nos últimos meses, sem sentir orgulho ou pesar em deixá-la. E partiu. Passou pela secretária anunciando que ia para uma reunião de urgência em um lugar qualquer que lhe veio à cabeça. Ela ainda questionou algo sobre o compromisso agendado e ele só se deu o trabalho de dizer:

“Marque para amanhã”.

Saiu apressado, deixando para trás toda a podridão e cobiça que destruiu tantas outras pessoas de bem. Pegou um táxi e ditou um endereço específico. Abriu sua maleta e puxou o porta-retratos dela. Olhou para a foto novamente. Nunca se cansava de olhar. Um jovem rapaz com cara de perdido abraçava uma linda garota que expunha um belíssimo sorriso. Ele mal se reconhecia naquela foto. Tão jovem e cheio de desejos e ambições, tão cheio de princípios que julgava serem inabaláveis. Tão ingênuo. E ela. Uma garota que mesmo sendo nova, era sim uma pessoa plena e incorruptível. Ela, que fora e sempre seria a possuidora do mais belo sorriso do mundo. Ela, a dona do endereço para o qual rumava o táxi onde ele estava naquele momento. Ela que jamais tentara convencê-lo de nada, nem do errado e nem do certo. Mas era ela a responsável por fazê-lo cair na real, quando disse pequenas palavras.

“Se você quiser me achar”, ela disse. “que seja você de verdade”.

Agora ele rumava para encontrá-la. E levava consigo apenas aquilo que era necessário. Pois seu lar estava lá, ao lado dela. Ele sabia que o fato de ter abandonado o barco não o tornava uma pessoa melhor, muito menos o eximia de culpa por todos os espinhos lançados. Mas ele lutaria para melhorar. Ele reconstruiria sua vida, passo a passo. Como numa grande caminhada, não se alcança o destino final de uma só vez. É preciso dar um passo de cada vez. E sabia que ela sempre estaria lá para ajudá-lo. Pois ela jamais o abandonara, mesmo quando não via sinal de humanidade nele. Como um jardim, ela semeou a terra e cuidou do terreno com todo carinho e dedicação que uma pessoa poderia ter, mesmo que as flores não dessem sinal algum de que fossem germinar. E agora era a vez dele cuidar dela. Talvez ficasse em casa para preparar o jantar quando ela saísse para trabalhar. Talvez mudassem para o interior. Ou para a praia. Onde seriam apenas ele e ela. E o céu e o mar.

quinta-feira, 17 de fevereiro de 2011

Musicontos - The Man Who Sold the World






Às vezes, quando olho pela janela e o reflexo de meu rosto se confunde com as sombras negras da cidade, meu pensamento se perde em lembranças passadas que nem consigo me recordar com certeza se ocorreram de verdade ou foram meros devaneios perdidos no mundo dos sonhos incompletos. Às vezes nem reconheço meu rosto no reflexo. E quando percebo, perdi horas e horas pensando em coisas das quais mal consigo me lembrar. É isso que acontece quando se envelhece castigado pela solidão. Suas lembranças se confundem com os sonhos e sua vida passa a ser uma incógnita que jamais será decifrada.
Hoje acordo sem saber quantos anos se passaram desde que sorri pela última vez. Já não faz mais diferença. Preferia saber quantos anos de lamúria ainda me restam. Quero descansar. De verdade. Quando me deito na cama e fecho os olhos, não sinto nada. Parece que o sono foge de mim, como um vampiro fugindo do alho. Meus olhos ardem, meu corpo está cansado e dói de modo que não há uma posição confortável em meu leito macio. Rolo de um lado para o outro e, quando percebo, a cabeceira está em meus pés. E não consigo adormecer. Eu evito pensar nele, contudo é a única maneira de cair no sono. É o único dos soníferos que ainda me fazem efeito.

A verdade irá purificá-lo, ele disse. Mas como posso ser purificado se ao menos sei o que é real?

De repente o sono me envolve e eu estou caindo. Caindo lentamente. Olho para os lados e as paredes passam a minha volta, como num poço profundo. Eu não sinto medo. O poço acaba em uma lagoa negra. Quando caio na água gélida, meu corpo se enrijece e eu volto a sentir vida em mim novamente. Submerso, procuro pela superfície, porém não a encontro. Sem luz para me guiar, vou seguindo meu instinto. Parece que ele resolveu voltar a funcionar. Vou nadando na direção que meu corpo me guia. Sem ar, sem medo, vou seguindo o meu caminho. Quando vejo um rastro de luz. É uma luz muito fraca e longínqua de cor âmbar. Meu coração dispara. Eu nem sabia que ele ainda batia. Guiado pela luz, cheguei a uma caverna submersa. A caverna era como um imenso hall, a água formava uma piscina natural de beleza única. A luz âmbar estava espalhada uniformemente por toda a caverna, contudo não havia nenhum sinal de tocha ou fogueira. A luz simplesmente estava ali. De repente eu me vi cheio de esperança.

Esperança, sentimento de gente jovem que ainda tem muitas chances de errar na vida. Que saudades eu estava de você!

Há tempos também não sabia o que era sentir saudades. Caminhei calmamente pela caverna. Observando cada um de seus detalhes, cada uma de suas imperfeições. Foi quando avistei uma escadaria. E a reconheci. Seria uma espécie de dejavu? Ou seria um fragmento de lembrança carta vez esquecido? E por que ela viria à tona agora? Olhei para os quatro cantos da caverna procurando alguma outra opção. Mas nada além daquela escadaria me parecia óbvio. Subi. Cada passo, um suspiro. Cada degrau demarcado pela batida de meu coração. Nem me lembrava mais de como era estar nervoso!
No topo da escada, um portal. Confeccionado em madeira crua. Empurrei-o e ele deslizou pelo batente. Um novo salão emergiu atrás da passagem. Entrei. A mesma luz âmbar sem origem iluminava esse outro aposento. No fundo da sala, um homem recostado em uma poltrona de espaldar alto me fitava. Ele não parecia surpreso, ou intrigado. Na realidade, ele não parecia sentir. Meu coração palpitava freneticamente. Mesmo sem conseguir ver seu rosto, eu sabia que era ele. Eu sentia. Caminhei em sua direção, sem nada a dever. Afinal, não tinha sido eu o responsável. Ele fizera tudo por conta própria e fiz questão de não influenciá-lo em sua decisão. Eu sempre fui seu amigo, embora ele nunca tivesse me dito. Eu sabia disso. Ele sabia disso.

Eu pensei que você tivesse morrido sozinho, muito muito tempo atrás.
Oh não.

E de repente tudo se fez claro pra mim. Ele não poderia morrer. Era parte do pacto. Ele teria que ficar por toda a eternidade. Seria ele quem julgaria se as partes do acordo estavam sendo cumpridas.

Então você não o vendeu completamente.
Eu não. Eu nunca perco o controle.

E lá estava eu, cara a cara com ele. E me lembrei de tantas outras vezes que nos encontramos. Quando conversávamos sentados sobre aquela mesma escada, proseando sobre o “o que?” e sobre o “quando?”. E eu sorri. Um sorriso puro e cru, como não sentia há anos. Cintilando pela caverna, ofuscando até mesmo o brilho da luz âmbar. Foi quando me dei conta que a luz era emanada dele. O fitei por um segundo. Talvez o mundo continuasse sendo o mundo independente do que ele tivesse feito. Talvez não.
Ele estendeu sua mão a mim. E eu a toquei.
Abri os olhos lentamente. Estava em meu quarto. A penumbra da madrugada adentrava a minha janela e os vultos da cidade dançavam em minha parede como fantasmas que queriam tirar de mim a beleza da verdade. Mas dentro de mim ainda trazia comigo a centelha de meu último sorriso e a beleza pura da luz âmbar. Agora eu sabia da verdade, ele estava lá para fazer com que o pacto fosse cumprido. Ele nunca abriu mão de nada.
Eu que há anos e anos não sentia aquilo. Era uma força tão grande dentro de mim que nem mesmo as milhões de respostas não respondidas seriam capazes de tirá-la de mim.

Mas aquilo teria sido de fato real?
E se nós morremos sozinhos, há muito muito tempo atrás?
Quem sabe?
Eu não.

terça-feira, 4 de maio de 2010

Corre, Natasha! Corre!

- Corre Natasha! Corre!
As chamas se aproximavam tão velozmente que parecia impossível que ela chegasse a algum lugar seguro antes que elas a alcançassem. A fumaça preta tornava tudo tão turvo que era impossível enxergar a menos de dois palmos a sua frente. Por duas vezes, Natasha quase quebrou o nariz ao colidir com um móvel ou uma parede. Brasas pulavam das paredes em chamas, dançando em ritmo de salsa, criando uma bela imagem pirotécnica que mais parecia ano novo em Copacabana. Seriam lindas se não chamuscassem suas sobrancelhas recém feitas. O calor era insuportável. Natasha se sentia nojenta, suava por todos os poros imagináveis e por outros que ela nem sonhava existirem. Os gritos de seus colegas não ajudavam em nada. Apenas a deixavam mais nervosa.
- Anda logo, Natasha!
- Se você disser mais uma palavra, eu juro que faço você engolir essa sua língua! E aposto que todos os outros ainda vão me agradecer depois!
O outro se calou. Ela adorava ver a cara de bunda com que eles ficavam depois de receber uma bela carcada. Às vezes até a fazia esquecer que estava dentro de uma casa em chamas. Natasha Ember era comandante do 15º Batalhão do Corpo de Bombeiros. Naquele momento, estavam operando um resgate em um sobrado do qual o dono, que morava sozinho, fez a gentileza de colocar a comida no fogo e subir para tomar banho. O resultado: uma equipe de cinco homens e sua comandante tiveram que invadir a casa e salvar o dito cujo do fogo que já consumia metade de seu belo lar. No momento, o homem já estava devidamente acalmado (uma técnica antiga em que o bombeiro aperta uma única veia no pescoço da vítima desesperada para colocá-la a dormir tranquilamente sonhando com belos carneirinhos branquinhos e sedosos saltitando em lindos campos verdejantes, enquanto os bombeiros enfrentam o inferno de Dante para tirá-la de lá viva) e sendo carregado em uma maca por dois bombeiros. Natasha vinha à frente, guiando o comboio. Mas ela estava sem saída.
- A porta da frente está emperrada! – dizia ela dando solavancos na porta que cismava em permanecer fechada. Rendida, Natasha deu cinco passos para trás. Ela respirou fundo. Uma exorbitante quantidade de dióxido de carbono invadiu suas narinas e tomou conta de seus pulmões - nada com o que não estivesse habituada – e correu em direção à porta teimosa. Com uma força descomunal para uma mulher, ela se jogou de ombros sobre o portal de madeira.
Natasha sentiu a pancada no ombro direito, seus olhos lacrimejaram instantaneamente, ao mesmo tempo em que ouviu o som mágico da madeira se rompendo. A porta se soltou do batente e caiu para o lado de fora. Natasha, como boa visitante, não pôde deixar de acompanhá-la. O golpe contra o chão foi ainda mais duro, mesmo que a porta o “amaciasse”. No mesmo instante, Natasha sentiu o cheiro puro e belo do oxigênio adentrando suas narinas. Ela não se levantou de imediato. Ficou deitada de bruços sobre a porta derrubada, admirando o céu negro estrelado, enquanto seus companheiros passavam por cima de seu corpo caído.
- Você está bem? – perguntou um de seus colegas.
- Melhor agora que consigo respirar ar de verdade e enxergar a dois palmos do meu nariz. – respondeu, ainda deitada sobre a porta. A brisa batia em seu rosto era uma dádiva de Deus, depois de sair daquele forno tamanho gigante.
- Quer se levantar agora?
- Não, obrigada. Vou ficar mais um pouco aqui.
- Ok. Me avise se precisar de ajuda.
Por baixo daquele cobertor de fuligem e cinzas, havia um belíssimo exemplar de mulher. Pele branquinha, cabelos ruivos naturais, cheia de sardinhas nas maçãs do rosto e olhos bem azuis, Natasha poderiam facilmente ser modelo ou atriz. Mas ela sempre foi movida pela adrenalina. Algo que não encontraria numa passarela ou na frente das câmeras. Ela sempre gostou de emoção de verdade.
- Errr... Natasha? – veio da além a voz de seu subcomandante. Pouco depois sua cabeça adentrou no seu campo de visão, cobrindo a Lua.
- Sim?
- Temos um problema. – ela bufou. Será que não poderia ter um momento de descanso depois de um resgate?
- E qual seria?
- O sujeito alega ter um gato de estimação.
- Ah... perfeito. – Natasha sabia que a aquela altura do incêndio, um gato já teria fugido ou virado churrasco. Não existia outra possibilidade. Mas como profissional não poderia deixar de tentar o “resgate” do animal.
No instante que a comandante se preparava para levantar de seu leito amadeirado e duro, um enorme estrondo assustou a todos ao redor da casa. Um barulho de madeira se rompendo. No mesmo instante milhares de fagulhas incandescentes se ergueram no ar iluminando a noite nebulosa como fogos de artifício. Uma enorme cortina de fumaça irrompeu pelas janelas e portas da moradia. Mais um estrondo de madeira se partindo foi ouvido.
- A fundação da casa está cedendo! – gritou Natasha para seus colegas. – Corram! Andem logo, saiam de perto da casa!
A correria e o caos tomaram conta da cena. Os bombeiros que tentavam controlar o fogo desistiram da empreitada na mesma hora, desligando a válvula e enrolando as mangueiras. Porém, antes que pudessem guardá-las devidamente no caminhão, o motorista deu a partida e tirou o veículo do terreno, fazendo com que dois bombeiros fossem arrastados pela impulsão do automóvel. O proprietário da casa se desesperou e tentou correr em direção ao seu lar. O subcomandante se precipitou para impedi-lo, entretanto a vítima do incêndio tentou resistir. Outros dois bombeiros tiveram que segurá-lo. Quando Natasha rumava para longe do inferno em chamas que se tornara aquela casa, a fundação principal finalmente cedeu e toda a estrutura do prédio foi ao chão. Natasha só teve tempo de se jogar buscando sair do alcance dos escombros.
Uma verdadeira cortina de poeira e cinzas se ergueu naquela noite. Ironicamente, o céu noturno estava límpido e estrelado. O vento noroeste que batia ajudou a dissipar os resíduos do desmoronamento rapidamente. Os bombeiros faziam uma busca minuciosa nos escombros da casa. Procuravam por Natasha Ember. Nenhum deles estava realmente acreditando que aquilo poderia ter acontecido. Ela sempre fora a mais durona de todo o batalhão.
- Senhor, você acha que ela pode estar bem? – disse um dos colegas de Natasha ao subcomandante.
- Vamos continuar com as buscas. – respondeu de bate e pronto mantendo a pose de seriedade.
- Não foi isso que eu perguntei, senhor. Eu digo... o senhor realmente acha que ela pode estar bem? – o subcomandante vacilou por um segundo antes de responder, dessa vez já aparentando estar profundamente abatido.
- Eu trabalho com Natasha a anos. – disse com a cabeça baixa e a voz falhando. - E ela nunca chegou nem perto de algo parecido com isso, sempre saiu ilesa.
Antes que o outro pudesse responder, ambos ouviram um miado. Eles se sobressaltaram e viraram na direção de onde viera o som do felino.
Encostada numa árvore, coberta de fuligem da cabeça aos pés e com um sorriso maroto estampado na face, estava Natasha Ember. Em seu colo, estava embolado um vulto preto que mais parecia um ursinho de pelúcia esquecido atrás do armário a anos. Havia mais poeira do que pelos. De repente, o ursinho de pelúcia se moveu e emitiu mais um miado. Aturdidos, os bombeiros correram em direção de sua comandante.
- Natasha! Você está viva!!
- Parece que sim. – respondeu ela sorrindo, mas exalando cansaço.
- Como isso aconteceu?
- Eu não sei. – disse com um ar misterioso. – Foi um golpe de sorte.
Golpe de sorte. Nunca contara com isso antes em sua carreira. Talvez fosse a hora de se aposentar da vida de bombeiro. Talvez tentasse alguma coisa na TV. Dublê seria um ótimo começo.